Pra que haja conteúdo, vou ter que falar pouco. Quando o assunto é evolução, qualquer biólogo que se preze fica empolgado e tenta explicar o universo todo. Eu também sou assim, mas vou me controlar. Esse post será uma nada rápida desmistificação do conceito deturpado popular de evolução que se aplica às sociedades, muitas vezes de forma equivocada.
Primeiramente, vamos esclarecer que evolução não é um proceso. É o nome que se dá a um conjunto de diversos processos que, embora entrelaçados, são independentes. Aos conceitos, então:
Diversidade
A diversidade é inerente à vida como a conhecemos. Se há alguma forma de vida que não esta sujeita a esse princípio, ainda não a encontramos. Mas dentro dos conceitos de vida mais aceitos pelas ciências, se essa “coisa” aparecer, ela não será identificada como viva tão rapidamente. A partir do ponto em que é inerente, ela não pode ser condenada. Mais que isso, ela adquire importância. Numa população em que há grande diversidade (portanto, variedade nas características que ela expressa), temos pequenas subpopulações com capacidades distintas de resistência, aptidões desenvolvidas de modo e intensidade diferentes e o mais importante: capacidade de adaptação. Esta populção pode estar sujeita a diferente tipos de pressão, da falta de alimentos a alterações climáticas, mas ainda que perca alguns de seus exemplares (talvez até os mais notáveis) resistirá enquanto população. Uma população com pouca diversidade, por outro lado, estará sujeita à extinção com maior facilidade sob pressões, muitas vezes, pequenas. Algumas formas de vida resistem numa faixa de temperatura estreita, por exemplo. Uns graus a mais e toda a população morre. Pouca diversidade resulta em fragilidade para a população como um todo.
Seleção
A seleção é a parte mais engraçada do processo evolutivo, porque as pessoas tendem a ver processos coordenados aqui, apesar de se tratar de um fenômeno bastante caótico. O processo de seleção ocorre quando, dada uma pressão, parte da população sucumbe e parte resiste. Exemplo bobo típico da girafa: Árvores mais altas num período de seca faria com que as de maior pescoço conseguissem se alimentar mais (e se reproduzir mais), enquanto as de menor pescoço morreriam. Outro: machos de penas azuis, por algum motivo, tornam-se mais atraentes para as fêmeas de uma dada espécie de aves, assim se reproduzem mais e com o tempo teremos uma espécie cada vez mais azul. Até o momento em que esse azul, por exemplo, comece a chamar atenção de predadores, então os muito azuis serão predados e a espécie terá um tom de azul intermediário.
Talvez a biologia tenha ecolhido a palavra errada para ese processo, pois não se trata de uma escolha. E aqui vão me chamar de “cricri”, eu sei. “O André é extremamente birrento com essas coisas de terminologia”. Sou mesmo. Mas não é a toa. Quando falamos de uma população selecionada, dá a entender automaticamente que ela foi escolhida. E se pensamos numa escolha, que é um processo consciente, pensamos que se uma população foi escolhida em relação à outra, ela deve ser melhor.
Eis o grande precipício entre a ciência biológica e o senso comum. A “seleção” faz parecer que algumas das características expressas dentro de uma população diversa são melhores que outras, porque resistem. Por pura preguiça de pensar que se a pressão fosse outra, talvez a parcela extinta fosse a sobrevivente e vice-versa. Isso tira todo o sentido da diversidade, pois induz a pensar que dentro de uma população, existem diversas características: a melhores e as piores. As piores vão ficando para trás e as melhores são mantidas, e assim caminhamos rumo à perfeição platônica.
Sim, em termos de “evolução” intelectual, andamos bem menos do que pensamos. Esse – o da perfeição – é apenas um dos paradigmas que ainda mantemos desde o princípio da nossa filosofia (do meu ponto de vista “perseguidor”, graças ao cristianismo).
Isso nos dá condições para pensar que algumas das variações (lembrando que variação é a expressão do princípio da diversidade numa população) podem ser chamadas de deformidades ou inaptidões. Se a criança nasce sem a orelha esquerda, ela nasceu deformada, e é pior que as outras crianças. Em tempos obcuros da história científica, isso já foi justificativa pra matar muita gente (mas não se enganem: a eugenia ocorre ainda hoje, de modo mais sutil). Em busca do ideal perfeito, minamos lentamente nossa diversidade. Os mais dramáticos diriam que nos tornamos uma massa amorfa e sem luz. Eu não sou tão trágico. Acho que existe sim muita forma e muita cor. Mas ainda é frágil.
Quando minamos a diversidade que se manifesta ao nosso lado, tornamo-nos frágeis. Tornamo-nos frágeis enquanto indivíduo e enquanto espécie. O que costuma diferir o ser humano de outras spécies é justamente a capacidade cognitiva. Só não descobrimos até hoje se isso foi realmente uma vantagem. Às vezes parece que não. Quando tentemos nos aproximar como que querendo todos estar na “média” e isso nos faz sentir mais fortes, parece que não.
O terceiro passo do conjunto de processos (que simplifiquei em três, mas vai bastante além… De cinco a muitos, dependendo do autor) é o que segue:
Especiação
Numa dada linha da história, as populações selecionadas vão se tornando distintas ao ponto de já não pertencerem a uma mesma espécie (que é, às vezes, também um conceito difícil de definir). Elas adquirem identidades tão diferentes que deixam de se misturar. Deixam de se reproduzir entre si. Esse isolamente é resultado de processos que levam mais tempo do que a nossa história toda enquanto espécie, na maioria dos casos. Mas ainda assim parece haver um fantasma rondando esta possibilidade. Um fantasma que nos deixa apavorados com a possibilidade de não sermos mais todos irmãos, filhos de um mesmo deus, à sua imagem e semelhança.
E a coisa fica “preta” quando tentamos atribuir estes conceitos de processo em nossas organizações sociais. Por natureza, qualquer processo humano será carregado de valores. Um conceito, ou melhor, um conjunto de conceitos que já chega até nós deturpado e cheio de valores embutidos, será atribuído a processos ainda mais valorados, por pessoas ainda mais valorativas. E asneiras serão cometidas em nome do pobre Darwin, ao ponto de termos discursos bizarros saindo da boca de economistas que tentam justificar o fato de haver populações mais ricas aptas que outras e, portanto, mais preparadas para a pressão capitalista ambiental.
Dá vontade de chorar (eu estava guardando meu dramatismo pro final).
Algumas coisas têm que mudar. Temos a opção de abandonar a referência da perfeição. Esquecemos que existe um deus-molde, não pensamos em nossa trajetória espiritual histórica como um melhoramento, entendemos que a variedade (inclusa a de pensamento) é necessária à nossa sobrevivência e rompemos subitamente com essa figura tríade paterna que tanto nos tem judiado.
A outra opção é transformar essa figura. No lugar de termos todos a sua face, ela é que terá de ter todas as nossas faces. Uma figura que é semelhante à vida como um todo é uma figura tão ampla e inimaginável que não pode se espressar por nada que não seja o próprio todo. E aí, talvez, esse Deus multifacetado tenha algum sentido enquanto criador da vida. Mas na verdade, seguindo a lógica da vida em transformação e reconstrução diária, essa figura não poderia ser provocadora (criadora), mas sim resultado inconstante, sujeito a adaptações diárias para manter a semelhança.
Duas considerações a fazer, para terminar, pois já estou fugindo de minha proposta inicial, que era não tentar explicar o universo à luz da evolução.
• Se construímos uma figura de deus à nosa imagem e semelhança (já deixando claro aqui que o inverso, pra mim, é inconcebível), então precisamos primeiro mudar um pouco nossa concepção de vida e realidade. Ou nosso deus será burro como nós todos. E injusto como todos nós. E não é como tem sido?
• Perdão aos filófosos, perdão aos humanistas, perdão às “professorinhas”, mas enquanto for assim, cristianismo e ciência não podem conviver em paz. Não enquanto o conceito de evolução for usado de modo torpe para jutificar que existam os melhores e piores. E aos senhores de batina (ou terno e gravata, na modernidade) apena digo que enquanto houver gente passando fome por ser pior, morrendo por ser pior, não podendo se casar com a pessoa amada por ser pior… Enquanto houver gente nessas condições, (dói, mas é verdade) ciência e religião são inimigas sim.